QUEM VEM COMIGO

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

COMO O VENTO



(Como o vento, como o ar, não é preciso ver para lembrar)

Quem sabe um dia eu consiga te tirar
das lembranças infelizes que mantive
que, decoradas na minha memória,
ficaram penduradas como história.

Quem sabe um dia eu consiga te tirar
do fundo da minha retina,
do verde da menina dos meus olhos,

desse olhar vago que teima em fixar
tua silhueta dobrando cada esquina.

Quem sabe um dia eu consiga te tirar
dessa parede da sala de estar
em que parado na  tua indiferença
ficaste apenas para me mostrar
o quanto de nada
é pra ti minha presença.

Quem sabe um dia eu consiga te tirar
dos pensamentos inquietos,
barulhentos
que como folhas carregadas
por um vento enfurecido
ensurdecem doído em meus ouvidos.

Quem sabe um dia eu consiga te tirar
dos sonhos que me pegam acordada
e me deixam varar as madrugadas,
e em castigo te trazem aqui, comigo,
sem a esperança e o descanso de dormir.

Quem sabe um dia eu consiga te tirar
da insanidade desse querer todo impossível
que só existe do lado de cá...
é quase uma história que escrevi
e que não aprendi bem a contar,
e por isso, só por isso, enlouqueci
bem antes da história acabar.

Quem sabe um dia eu consiga te tirar
daqui do fundo em que te guardei
e esqueci em que canto enfiei
o segredo, a chave, a fechadura,

e me deitei,

não sem antes
lacrar a abertura,
e deixar enferrujar
a armadura,
e expirei todo o ar
que era a cura

e morri,

mas - esquecida,
não andei
pra sepultura.

[elza fraga]

domingo, 28 de agosto de 2016

PARA QUE SERVEM AS MÃOS



Mãos tecem textos
em compulsão,
mãos buscam,
afagam,
expulsam.

Mãos calam,
mãos falam.

Mãos misturam
em alquímicas receitas
o pão,
e sustentam
a harmonia

quando a mesa
está vazia.

Mãos ajeitam cobertas
de filhos, de amores,
de afetos,
de amados e amantes...

dos que ficam,
dos passantes.

Mãos se puxam,
se empurram,
pra conseguir caber
em corações alheios.

Mão é freio
que segura emoções,
e é o laceio que afrouxa
e dá tom bonito
ao antes feio.

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Mas a mesma mão que um dia
abençoa
em nome de Deus,
sabe bem a hora do desapego

e de acenar
o adeus.

[elza fraga]

IMAGEM: Mão de elza fraga em clique próprio

sábado, 27 de agosto de 2016

NASCI MULHER




(Resposta a uma feminista que não entendeu que ela pode ser o que quiser, que eu aceitarei, respeitarei sua escolha e acatarei o seu conceito, mas respeite também a minha condição, pois ser mulher, e cheirosa, é prerrogativa e direito meu!)

Não foi sem pedir,
ninguém me obrigou a nada,
rolou negociação,
escolhi junto com a equipe
da reencarnação
que queria em matéria
ser Maria,
e não João.

O corpo é meu
e dele faço uso.
E se me apaixono,
ou amo, ou desejo,
parto primeiro pro beijo,
pro abraço apertado,
se continuar gostoso,
eu até caso.

Sou mulher sim,
não pra lavar louça
ou cuidar de macho,
aprendi que eles se cuidam
muito bem sozinhos,
abrem seus próprios caminhos
assim como os meus
sou eu que abro.

Sou mulher pra ser igual,
não complemento.
Não sou fermento para fazer
macho crescer
e me deixar adormecer
virando sombra,
vaga figura de ornamentação.

Eu sou mulher,
por opção, escolha minha,
e satisfeita com minhas funções
que os homens já tem lá as suas,
diferentes, mas do mesmo valor,
me deixem por aqui,
quieta com as minhas,
por favor.

Respeito o direito
de quem é diverso e pensa diferente,
então respeite também meu pensamento,
pois não nasci mulher
por algum engano
ou trapalhada
de um anjo torto,
nasci por gosto.

Nasci mulher porque pra isso
fui fadada,
sou meio bruxa,
sou quase fada.

Ando tentando fazer o meu dever direito
até passar para o outro plano.

Quem sabe na outra encarnação
ao invés de vir Maria
eu queira vir João?
Aí eu negocio com a equipe
que do outro lado não tem conversinha,
nem lamento,
é tudo na negociação
e no merecimento.

Mas por enquanto ser mulher só me faz bem,
e é tão doce
poder encostar meu rosto
no peito
do homem que escolhi,
ou escolher,
e me saber frágil nessa hora
e forte também.
Afinal quem sai ganhando?
Eu que me derreto em dengo
ou ele que me seduz,
e tem um trabalhão danado
pra me fazer luz?

Ninguém!
Nós empatamos.

E me orgulho, e muito,
de poder ser até ser mãe
se entender
que é isso que eu quero ser...
e entendi,
e quis, me fiz matriz,
preenchi duas vezes
meu útero de amor,
nada me faltou,
pois hoje sou!

[elza fraga]

IMAGEM: Retalho de elza fraga em clique próprio

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

NENHUMA SERVENTIA



Para que servem os olhos
além de fitar
os vazios,
os contornos,
os entornos,
os estorvos?

Miram as montanhas,
os pequenos arbustos,
a pena
na angústia de sabê-los
presos
- rebanho,
a terra inquieta,
que a qualquer momento
pode expurgá-los
em capricho estranho.

Pra que servem os olhos
além de de fitar o escuro,
o abismo,
o capim roendo sepultura,
a amargura
da vida escoando
corroendo entranhas,
o desespero profundo?

Os olhos só servem
pra verter toda a água
que inundará o mundo...

[elza fraga]

IMAGEM: Olho de elza fraga em clique próprio